sábado, 6 de novembro de 2010

O amor é fodido

Capítulo 1

(...)

"... Tentei acordar-te, levar-te para um hospital, mas já estavas inconsciente e, para além disso, tive medo de te contrariar. Nunca mais me falavas. Perdias logo o pouco amor que me tinhas. Imaginava a tua cara furibunda por estares a fazer figura de adolescente apaixonada, numa enfermaria pública ainda por cima. Deixei-me estar ali na cama, ao teu lado, a ver-te morrer e a pensar no que ia fazer à minha vida contigo morta.
Bons tempos."

(...)

Capítulo 2

"O amor é fodido. Hei-de sempre acreditar nisto. Onde quer que haja amor, ele acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser fodido.
É melhor do que morrer. Há coisas, como o álcool e os livros, que continuam boas. A morte é mais aborrecida.
Por que é que nós fodemos o amor? Porque não resistimos.
É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo."


(...)

"Estávamos sempre a foder, ou a recuperar, ou a prepararmo-nos para foder. Em nada afectava o nosso amor. Tanto suspirávamos como arfávamos; tanto dizíamos carinhos como palavrões; era-nos igual. A coisa funcionava sozinha. Se exigisse algum esforço da nossa parte, teria fracassado. É uma consolação que resta. O amor é fodido, mas foder também."

(...)

Capítulo 3

(...)

"Já não sei o que dizer. A amargura apanhou-me as mãos em água e em vida. As mãos vão contra os olhos. Mexem. Mentem sempre. Quando me sentam na mesma mesa onde estivemos sentados, parto a loiça toda e como e bebo pelos dois. Deve ser esta minha timidez e esta minha cobardia, que só quando estou longe me vem o coração às mãos e tenho vontade de to oferecer, sem medo que o possas aceitar, tal era o mal que te fazia. (...)
Quanto mais longe, mais perto me sinto de ti, como se os teus passos estivessem aqui ao pé de mim e eu pudesse seguir-te e falar-te e dizer-te quanto te amo e como te procuro, no meio de uma destas ruas em que te vejo, zangado de saudade, no céu claro, no dia frio. Devolve-me a minha vida e o meu tempo. Diz qualquer coisa a este coração palerma que não sabe nada de nada, que julga que andas aqui perto, e chama sem parar por ti."

(...)

Capítulo 4

" Tenho a impressão de estar feliz.
Não é mau.
Tenho sessenta e quatro anos. Tive uma vida de merda mas a culpa foi minha. O menos que se pode dizer é que tem sido interessante.
Tem graça.
Não me lembro de alguma vez ter estado feliz.
Antes.
Nem em menino.
Senão lembrava-me de certeza.
Porque é muito bom.
Deve ser - por estar, finalmente, ao pé do meu amor.
Meu amor.
Mulher má. Mas é.
Mulher má.
Mas minha.
Teresa.
Deve ser por isso.
Ela também parece não estar triste. Nunca a vi assim.
Mulher dúbia.
Teresa, chama-se.
Anda cá.
Vamos brincar ao "Lembras-te"
Lembra-me lá como é.
Quem se lembrar de mais coisas, perde.
Perde quem se lembrar primeiro.
Tu perdes sempre.
Não vale dizer a verdade.
Ai isso é que vale - desde que não seja.
Está bem."

(...)

"..Não tenho razões para estar feliz, mas feliz é precisamente, aquilo que eu, neste momento, mais estou. Mais, pelo menos, do que em qualquer momento de que me lembre, ocorrido durante a minha tal vida despreocupada e interessante.
É da Teresa.
É desse inferno em pessoa que vem a minha felicidade.
Durante décadas fez de mim um miserável. Mais do que miserável: um ministro dela. Agora fez que deixasse de ser infeliz.
Ai.
Como eu adoro a puta desta vida.
Eu, João. Inválido de qualquer comércio; incluindo o sexual.
Intercâmbio de que eu toda a vida gostei. Até à semana passada.
Queridos Tios.
A semana passada dei a minha última foda. Há uma semana seis caralho. Há uns quinze dias.
Gostei.
Sempre gostei.
Agora tanto se me dá como me deu. A Teresa também não pode foder.
Ela até muito menos que eu.
Ela que fodia tão bem.
Durante aqueles anos todos em que nos demos tão mal.
Em que nos íamos matando.
Em que decidimos morrer.
Teresa.
Lembras-te de quando nos matámos?
Em lembro-me perfeitamente.
Foda-se - já perdi.
Perdeste à primeria, atrasado mental.
Já não me interessa perder ou ganhar.
Mentiroso."

(...)

Capítulo 5

"Vamos brincar ao "estragaste-me a vida quando", que eu já não aguento mais.
Daqui a nada estou a cantar.
A felicidade é contagiosa.
E desinteressante.
Não acontecesse nada enquanto estamos felizes. Só estamos felizes porque já houve alguma coisa que já aconteceu. O que nos vale é a lembrança duma vida de martírio ininterrupto. E de infinito prazer.
Muitas vezes confundem-se não é?
Depende de quem está a contar o quê.
Eu, por exemplo, gostava muito de foder e considerava aquilo um martírio. Tanto esforço, tanto tempo perdido. Mas depois deixou de me apetecer e também isso considerei um martírio, não porque tivesse saudades, mas porque já não tinha nada para fazer.
Tenho saudades do teu rabo."

(...)

"Estou paralítico mas a verdade é que não quero mexer-me.
Se calhar, nunca mais.
Não quero sair daqui.
De ao pé de ti.
Mulher má.
A minha Teresa.
Até que em fim.
O que custou chegar aqui.
Foda-se.
Só de pensar nisso fiquei triste outra vez.
E tu? Continuas feliz?
Aquilo de fingir que estávamos a foder tirou-te o tesão.
Tu és mesmo, mesmo má.
Assimétrica, a mais reles que há.
Vou-me embora.
Na tua cadeira.
Que mundo este, onde até a mobília se mexe.
Não voltes a dirigir-me a palavra.
Estragaste-me a vida.
Fizeste de mim monge,marido e putanheiro.
As três coisas que eu mais abominava ser. Acabei por ser uma ou duas das três coisas quase permanentemente.
Por tua causa.
Por este meu amor.
Matar.
Que eu bem quis matar.
Amor.
Que eu bem traí e mal disse, sempre que se me apresentou uma oportunidade.
Assim como, há muito tempo, te quis matar a ti, estando tu já morta.
Morta.
(...)
Nunca para me vingar. Só para te cortar aos pedacinhos.
Mulher má.
Porque é que me havias de calhar?
Não conheço um único homem mau que não tivesse acertado com uma mulher boa.
Só eu.
Foi azar.
Mulher má.
(...)
Estamos paralíticos; estamos velhos; estamos fechados num lar de terceira idade.
Já não podemos foder.
Mas podemos falar.
Já não podemos fazer maldades.
Mas podemos falar delas.
Já não podemos fazer nada senão falar.
Um dia nem sequer isso.
Estaremos apenas juntos.
Finalmente juntos.
Já é qualquer coisa.
Pode ser que não possamos ser mais separados. Depois de tantos anos.
Tu és a minha Teresa.
O caralho é que eu sou.
Eu sou o teu João.
O que me custam dizer estas frases.
Comparado contigo, eu sou uma boa pessoa.
Lá estás tu.
Sim, boa.
Tu és mesmo uma mulher má.
Sai da minha frente!
Livra-te de ires para muito longe!
Deixa-te circundar nos cantinhos do meu campo de visão.
Para que te veja.
Para te controlar.
Por amar-te estupidamente."

(...)
(...)
(...)

Miguel Esteves Cardoso

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